Os três anjos

O que pode ser pior do que a confirmação da nossa fragilidade, principalmente quando a consciência nos dá uma única certeza: “Não somos nada nessa vida”. Então, porque ser soberbo e ter orgulho de ter poder, ter bens que nem usamos… coisas que não são levadas daqui. Meu avô já dizia: “A gente leva da vida a vida que a gente leva”.

Lembro-me da época em que éramos muito pobres, de tantas comidas e doces deliciosos que não comíamos porque não podíamos comprar.

Hoje, ironicamente, tenho dinheiro para comprar tudo o que quero, mas a doença me impede de comer quase tudo. Felizmente, o dinheiro pode pagar a suíte do melhor hospital do país. Apesar disso, a última refeição que comi foi uma sopa fina de legumes, cerca de três dias atrás. Sem sal, sem queijo ou azeite, mas foi uma delícia. Agora, apenas o gotejamento desse soro amarelo e o desenho animado na TV. Eu gostaria de chamar a enfermeira para aumentar o volume, mas me divirto inventando o diálogo e a história. Isso mantém minha cabeça ocupada. Além disso, é final de madrugada e pode acordar alguém.

Amanhã o entediado do meu cunhado deve chegar para a assinatura dos contratos. O bom é que ele não vem sozinho. Eu pedi a ele para vir com Amanda. Depois que minha irmã morreu — com o mesmo câncer que me pegou, também, estômago — meu cunhado assumiu todas as responsabilidades da empresa. Eu aguento o entediado só para ver Amanda, minha sobrinha mais nova. Está cada vez mais bonita. Vai fazer dezoito anos no próximo mês. Como eu gostaria de aguentar até lá, mas só se fosse por um milagre.

Vencido pelo sono, Fabrício dormiu pensando em Amanda. Durante toda a madrugada, o soro foi trocado várias vezes, e o outro braço já não segurava a agulha. Acordou com as dores e o cansaço da noite mal dormida. Ele abriu lentamente os olhos quando sentiu o leve toque de lábios quentes em sua testa, depois em seu rosto e finalmente em sua boca.

— Bom dia, titio. Você dormiu bem?

Em suma, uma alegria: foi Amanda quem lhe deu aqueles beijos acompanhados de um sorriso incomparável.

— Eu não consegui dormir bem, mas estou acordando bem.                                                              

— Você sabe, tio, pedi ao meu pai para esperar lá fora. Eu queria acordá-lo com beijos como eu fiz, você gostou?

— Eu queria morrer assim.

— Não diga isso. Aqui estão os contratos, vou levantar um pouco a cama e você os assina. Eu entrego ao papai e fico aqui com você até Letícia chegar.

— Letícia está chegando hoje?

— Sim, e Fabiana chega de Paris às nove horas da noite.

— Eu devo estar morrendo, todo mundo vem me ver pela última vez?

— Não está morrendo, não. Nós combinamos, gostaríamos de passar um dia com você.

Fabrício era o único homem da família. Ele tinha três irmãs, apenas duas agora e, coincidentemente, cada irmã tinha uma filha. Letícia, Amanda e Fabiana, uma mais linda que a outra, cada uma com um detalhe marcante ou característica que as tornavam diferentes, mas iguais em um ponto: amavam o tio e eram iguais a ele. Lutadoras e dedicadas à empresa. Enquanto as mães gastavam a sua fortuna em extravagâncias, cada filha tentava trabalhar com uma responsabilidade e viver cada vitória que o tio havia conquistado nos últimos anos.

     Leticia cuidava das exportações, Amanda de toda a logística dentro do país e Fabiana da subsidiária na França, que distribuia para toda a Europa. Embora elas fossem jovens, Fabiana, a mais velha, só tinha vinte e quatro anos. Elas estavam envolvidas no trabalho e aprenderam tudo muito rapidamente.                                    

Elas deviam o que sabiam ao tio que sabia como guiá-las com jeito e astúcia. 

Nunca brigavam entre si, cada uma respeitava o espaço e o tempo da outra. Eram cúmplices. Dividiam o amor do tio enquanto ele tinha saúde. Sabiam uma da outra, mas não tocavam no assunto entre si, viviam isso com a maior naturalidade, sem limitações, penalidades ou culpas inúteis. Claro, foi a razão pela qual o relacionamento sempre deu tão certo.

Mas agora o tio estava indo embora e todo o dinheiro do mundo não podia fazer nada contra tal fatalidade. Tudo foi tentado.        Médicos do exterior, duas cirurgias e o sofrimento de prolongar a vida com medicamentos fortes, que era responsável por impedir que Fabrício tivesse um fim digno. Impulsionadas por uma ideia de Fabiana, as três se juntaram, então, e no dia seguinte chegaram em torno das treze horas no hospital.

A primeira providência era estarem todas de branco para serem confundidas com as enfermeiras. Letícia tinha passado no melhor restaurante de frutos-do-mar, o único que o tio frequentava, trouxe maionese de camarão, casquinha de siri e moqueca de lagosta. Amanda passara no mercado e comprara duas dúzias de ostras frescas.                                                             

Fabiana cuidou dos temperos e do pudim de leite condensado. Tudo isso muito escondido e lógico, depois de um suborno razoável dado à enfermeira-chefe. Elas fecharam a porta, colocaram toda aquela comida diante dos olhos assustados do tio e ficaram observando. Fabrício comeu com tanto prazer, abusando de pimenta e pudim, que dava inveja.

Nesse ponto, elas desligaram o controle do coração e tiraram o soro do braço do tio. Leticia foi ao banheiro e levou duas toalhas grandes. Amanda abriu a necessaire com sabonetes e cremes. Fabiana colocou um CD de Mozart e Amanda fechou as cortinas, deixando a sala em uma penumbra. Foi para a cama e puxou o lençol em primeiro lugar, depois as três tiraram o tio do leito e o levaram na banheira.

A música de Mozart encheu a sala, as três ficaram nuas, Amanda abriu o chuveiro de água quente, Fabiana e Leticia ensaboavam pernas e cabelos do tio. Finalmente, elas o levaram até as toalhas estendidas no chão e o colocaram deitado. Elas ensaboaram seus corpos e abraçaram o tio como se fosse um único corpo. Os movimentos de pernas, mãos e bocas, acompanhados por música como uma despedida, um ballet para perpetuar os últimos minutos de vida. Fabrício suspirou brevemente. Era difícil até respirar, mas depois abriu os olhos novamente, com um sorriso.

Os três anjos de sua vida foram deixando os corpos sobre o dele, entregues ao prazer e fazendo o tio atingir uma alegria infinita como nunca tinha provado.

A respiração foi se esvaindo e o tio morreu com dignidade, sendo levado por outros anjos. 

Dois meses se passaram, e as três marcaram um encontro no túmulo de Fabricio, cada uma com uma rosa-branca, que colocaram ao lado de seu retrato.

Elas estavam entrelaçadas, mas não tinham quaisquer sentimentos de tristeza. Afinal, no dia anterior, em uma reunião do conselho, na leitura do testamento, o tio tinha deixado para as três, oitenta por cento das empresas. Tem quem jure que o tio sorriu na foto.


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