No milênio passado assisti a uma entrevista do filólogo e diplomata Antônio Houaiss no Roda Viva que acendeu em mim uma paixão pela origem das palavras e na noite do feriado Pátrio encontrei no Youtube a gravação da entrevista e a assisti novamente, mas na telinha do celular. Voltei a 1992 para rever Houaiss – então Ministro da Cultura do governo Itamar Franco – defendendo, como diplomata, seu Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. No final do programa, um sonhador Houaiss falou do projeto de um dicionário da Língua Portuguesa que concorreria com o “Aurélio” e teria mais verbetes e a idade das palavras!
Muitos anos depois – em uma escola onde trabalhei – fiquei encantado com um exemplar real daquele dicionário e é com o auxílio principal deste livro que compartilharei com vocês, prezados leitores, alguns dos resultados de minhas ávidas buscas. Como também amo a História, inicio nossa jornada pelas palavras mais antigas que encontrei no dicionário, geralmente vindas da mistura entre latim e as línguas da Península Ibérica onde surgiram Espanha e Portugal.
Inicio pelo século IX, e a palavra mais antiga que encontrei até agora é a preposição de, gestada de 850 a 866, e vinda do latim. Depois achei o adjetivo bárbaro, originado em 883, que também veio do latim, onde significa ‘estrangeiro, grosseiro, não civilizado’… O adjetivo barbudo apareceu em 960 mas, curiosamente, o substantivo barba só surgiu em 1250.
No século X encontrei várias palavras pequenas: barca – substantivo feminino que apareceu em 911 e corresponde a “enorme variedade de embarcações fluviais e marítimas”; seu masculino – barco – apareceu em 919, significando “nome genérico de qualquer embarcação”. Porto é do mesmo ano e vem do latim ‘portus’. Achei interessante o primeiro significado da palavra: “trecho de mar, rio ou lago, próximo à costa, que tem profundidade suficiente e é protegido por baía ou enseada, onde as embarcações podem fundear e ter acesso fácil à margem”. Em 921 surgiu o substantivo boi que provém etimologicamente do latim ‘bos, bovis’. Já o substantivo masculino rio surgiu em 925 e provém do latim vulgar ‘rius’, derivado do clássico ‘rivus’. Água, no entanto, data de 973 e também se originou no latim. A palavra oitava, originada em 936, chamou-me a atenção com seu segundo significado – “período de oito dias durante os quais é celebrada uma festa religiosa” – que me lembrou um trecho da Carta de Caminha “E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril…”
No século XI, só achei uma palavra por enquanto, o artigo definido o, que talvez tenha surgido em 1013, do português arcaico ‘lo’ e, antes, do latim ‘illu(m)’. É “engraçado” que a data de surgimento deste artigo definido esteja indefinida. No século XII encontrei até agora o substantivo masculino rei, que aparece em 1101 vindo do latim ‘rex, régis’. Porém o vocábulo raínha surgiu apenas no século XIII. Fé – substantivo feminino – aparece em 1111, do latim ‘fides, ei’, fé, crença (no sentido religioso), engajamento solene. O substantivo masculino Deus surge no século XII, provindo do latim ‘deus, dei’.
No século XIII encontrei o substantivo masculino mar, do latim ‘mare, maris’. O substantivo masculino dia, veio apenas em 1214, do latim vulgar ‘dia’, via latim clássico ‘dies’. Navio provém do latim ‘navigium’. Jornal entrou para nosso idioma naquele século do latim ‘diurnalis’ com o sentido de remuneração salarial diária cujo sinônimo mais apropriado é ordenado. Mas jornal – com o sentido de publicação diária de notícias – só apareceu em 1825, ou do italiano ‘giornale’ ou do francês ‘journal’. O substantivo pé provém do latim ‘pes, pedis’. A palavra ar deriva tanto do latim quanto do grego ‘aer, aeris’/ ‘aer, aéros’. Uma palavra que gosto muito de usar para meus amigos vem daquele século, é prezado – querido, estimado, dileto – e veio do latim. Fechando o século XIII destaco infante – significando criança, menino ou menina – de Infanta Berengária ou Infante D. Henrique, por exemplo, do latim ‘infantis’.
A pequenina palavra nau, originou-se no século XIV – vinda do latim ‘navis’ ‘navio, embarcação’ – e no mesmo século surgiu do grego a palavra para outra de minhas paixões na ciência: História. Compreendi que as primeiras palavras de nossa língua eram geralmente pequenas e ligadas à navegação, ao cotidiano e à administração.
Sabemos que a península ibérica foi invadida pelo Império Islâmico vindo do Norte da África no século VIII como resultado da expansão que começou na Arábia, na Ásia. Cultura maravilhosa de escritores, filósofos, historiadores, médicos etc, os “mouros”, em sua longa estadia na Ibéria, deixaram suas marcas no idioma português. Um detalhe, a palavra mouro surge entre 1055 e 1065 – embora os árabes estivessem por lá há mais tempo – do latim ‘Mauritorum’, os mauritanos e ainda hoje existe um país africano chamado Mauritânia.
Voltando ao nosso idioma, destaco algumas palavras de origem árabe. Alfétena, substantivo feminino, aparece em 969, de ‘al-fitna’, significando hostilidade, discórdia, guerra. Alferes aparece em 1130, de ‘al-faris’, cavaleiro, escudeiro, que no Brasil equivale a segundo tenente. Azeite aparece em 1262, de ‘az-zayt’, óleo, essência; azeitona, vem de ‘az-zaytuna’, no século XIII, significando tanto oliveira quanto azeitona e ambos os termos remetem ao hebraico, assim como o latim se apoiou no grego. Algodão, de 1279, veio de ‘al-qutum’ e vejam uma informação histórico-geográfica interessante: ‘planta introduzida na Andaluzia – região da Espanha – no século XII.’ Alface, de ‘al-khass’, aparece em 1526, já no século XVI.
Há muito mais palavras provindas do idioma árabe que gostaria de comentar, mas agora que chegamos ao século XVI, um dos mais intensos nas grandes navegações, surgiu em 1537 o nome da disciplina amada na qual tenho lecionado a vida toda: a Geografia, provinda do grego via latim. Geologia – para ficar no mesmo campo – surgiu bem depois, apenas em 1836 mas há uma dúvida se veio do francês géologie ou do inglês geology.
Para concluir, só mais uma das minhas paixões, a Geopolítica, que tem um genérico “século XX” como data de nascimento no dicionário, mas encontrei um artigo de Bertha Becker (1988) afirmando que a Geopolítica surgiu em 1917 e que um dos seus primeiros estudiosos brasileiros foi Everardo Backheuser (BECKER, 1988:111); busquei seu livro de 1926 e encontrei a palavra ‘Géopolítica’ ali (BACKHEUSER, 1926:14;46).
Referências:
BACKHEUSER, Everardo. A Estructura política do Brasil: Notas Prévias.Rio de Janeiro: M Machado, 1926.
BECKER, Bertha K. A Geografia e o resgate da Geopolítica. In: RBG. Rio de Janeiro, 50, n°. especial, t. 2: 99-125, 1988. Disponível em: https://rbg.ibge.gov.br/index.php/rbg/article/view/1215/909.
Caminha, Pero Vaz de. A Carta. Disponível em: https://portalabel.org.br/images/pdfs/carta-pero-vaz.pdf . Acesso em 14 set 2024.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Objetiva, 2009. 1a edição.
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