Decididamente, aquele não era um lugar para se estar àquela hora. Ele entrara na casa devido a um desafio feito por um amigo, porém, agora, arrependia-se. As tabuas do soalho rangiam, havia goteiras e limo por toda parte e, o pior de tudo, a falta de iluminação fazia com que sombras errantes aparecessem em cada lugar a todo momento, de modo que ele tinha a impressão de estar sendo seguido e observado pelas trevas.
A casa, na verdade, uma mansão, fora tombada pelo patrimônio histórico da cidade, mas estava há mais de meio século abandonada tornando-se um arremedo tétrico do que outrora representou a ostentação, o luxo e a pujança dos antigos barões do café; além de servir de abrigo para toda sorte de pragas urbanas como ratos e baratas, ocasionalmente era invadida por moradores de rua.
Os cidadãos mais velhos diziam que o casarão era assombrado pelo espírito do barão, também costumavam contar estórias macabras sobre o lugar, as quais sempre envolviam alguém que, assim como ele, entrara ali sem a devida permissão; e acabava morto.
Ele tinha a esperança de que fossem apenas narrativas como as que os pais contam justamente para manter os filhos longe de lugares como aquele e, apesar do medo que sentia, seguiu em frente até entrar em um dos quartos. Deu alguns passos e a porta fechou-se com um estrondo, deixando-o no mais absoluto breu; pouco a pouco, seus olhos se acostumaram à escuridão e a luz da lua começou a entrar pela janela. Só então passou a prestar atenção no cômodo.
Era um aposento enorme – alguns apartamentos na cidade deveriam ser menores – continha um sem número de móveis que, de algum modo, tinham sobrevivido às intempéries e ao tempo, na verdade, eles pareciam … quase … novos; a despeito do inconfundível estilo antigo.
Um desses móveis em particular chamou-lhe atenção. A princípio, pensou se tratar de um espelho de corpo inteiro, coberto por um tecido. Sua curiosidade foi tamanha que o fez esquecer o medo; aproximou-se e removeu o véu. Ele ficou completamente perplexo com o que viu. Tratava-se de um retrato em tamanho real e, se não fossem pelas roupas de épocas diferentes, dir-se-ia que ele servira de modelo para o quadro.
Era quase como se ele olhasse para o seu reflexo de séculos atrás. As mesmas feições, a mesma altura, cor e corte de cabelo, as sobrancelhas grossas, os olhos castanhos vivos e até mesmo a pinta na bochecha esquerda estavam lá.
Ele mal percebia o lento passar do tempo, fitando o retrato que parecia, de alguma forma, a um só tempo desconhecido e familiar, como alguém que visitasse um antigo parente do qual se tem uma vaga lembrança.
Ouviu passos aproximando-se pelo corredor. Seu coração disparou. Aquele som, tão próximo, tão real, o tirou do transe. Virou-se rapidamente, os olhos arregalados, procurando a origem do ruído. O retrato, antes tão familiar, agora o encarava com um olhar frio e distante. Era como se a pintura tivesse ganhado vida, como se aqueles olhos castanhos o julgassem.
Um arrepio percorreu sua espinha. A porta se abriu lentamente, revelando uma figura escura na penumbra. A silhueta se aproximou e ele tentou distinguir os traços, mas a escuridão o impedia. A figura parou em frente ao retrato e, por um breve momento, sob a tênue luz da lua, reconheceu seu amigo, mas vestia-se como numa daquelas novelas de época; com um sorriso, disse:
“Finalmente…” – a voz ecoou pelo quarto, profunda e rouca e, ainda, assim, era como um sussurro nos ouvidos. “Você voltou”. “O que achaste do teu retrato?”
E com um movimento rápido, estendeu a mão e apontou para o retrato. O jovem ficou sem entender – como aquilo era possível? – e enquanto ele hesitava, o amigo, mais uma vez, chamou-lhe a atenção:
– Ora! Não me deixes sem resposta! Acaso o gato comeu tua língua?
– Esse sou eu mesmo? – Perguntou?
– Fiz o mais real que a técnica me permite. O que há contigo? Está bastante disperso hoje.
– Me desculpe, eu … eu realmente fiquei sem palavras… É um retrato tão perfeito que mais parece um espelho…
Aproximou-se do retrato e tocou-o levemente com a ponta do indicador. Houve um leve tremeluzir de luzes, ele sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha e então a pintura se soltou da parede e caiu no chão, quebrando-se em mil pedaços. O jovem sentiu um medo intenso tomar conta de seu corpo. Ele sabia que tinha algo de errado e que não tinha escapatória.
No entanto, no mesmo instante em que o retrato se estilhaçou, uma luz intensa inundou o quarto, que começou a se desintegrar, como se fosse feito de fumaça. O jovem fechou os olhos com força, esperando o pior. Quando os abriu, a mansão estava completamente diferente. As paredes estavam rachadas, os móveis em ruínas, mas não havia mais sinal do amigo e apenas a escuridão que antes o envolvia ainda era sua companheira.
Ele estava sozinho, de pé no meio dos escombros. A casa, que antes era um lugar de terror, agora parecia vazia e sem vida. Com um suspiro, ele se virou e correu em direção à porta, determinado a nunca mais voltar ali.
Ao sair da mansão, a luz da rua o cegou por um momento. Quando seus olhos se ajustaram, ele percebeu que seu amigo estava muito aflito.
“Você ficou lá por horas!” – disse – “Achei até que tinha acontecido alguma coisa a você!”
O jovem explicou o que tinha visto, mas seu amigo não acreditou nele. “Você não precisa inventar essas coisas” – disse ele – “Já ganhou a aposta”. Mas o jovem sabia que era verdade. Ele havia enfrentado o sobrenatural e sobrevivido. A partir daquele dia, ele nunca mais foi o mesmo.
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