O conto do conto

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O pretenso escritor finalizou seu conto com a inesperada palavra FIM. O aborrecimento vindo da pressão do prazo e da ausência de ideias fez com que aquele fim em especial fosse suado e sofrido. 

Ele sempre escrevia para o jornal da cidade, deixava a mente e a língua intelectual livres e saía muita coisa dali. Algo até se aproveitava do que escrevia e ganhou um prêmio tempos atrás vindo de um concurso de escritores maduros, esquecidos em recantos remotos. Não apareceu na televisão, nem em jornais de cidades grandes, nem na internet. Apenas uma nota no jornal da própria cidade e um certificado impresso em papel chinfrim, preto e branco. Mas quando tinha sobre si o prazo, tudo emperrava. E foi esse o caso desse conto. 

Tinha visto numa revista de literatura uma chamada para contistas submeterem seus trabalhos inéditos até o último dia do mês que versassem sobre experiências vividas em cidades do interior, de paisagens bucólicas, de vida ainda recendendo ao período da colônia, onde o ato da escrita já era libertário demais para estes tempos. Junto a tantos concursos que surgem, esse chamou a atenção: era sua praia, era seu dia a dia, era ele quem tinha de descrever sua experiência. 

Estava ainda no dia 10 do mês e teria tempo para elaborar um enredo bom e curto, pois o limite de seis páginas – ou laudas, como insistem em chamar esse espaço – estava explícito e não poderia ser ultrapassado. Temia, no entanto, acontecesse como de outra vez que se empolgou tanto para escrever a história de princesas e sapos que rapidinho atingiu oito páginas. O concurso pedia no máximo cinco páginas. Fez o que nunca deveria ter feito e resumiu o texto depois de pronto. Ficou uma porcaria. Ele não soube, mas a comissão julgadora riu muito daquela vexatória mixórdia sem pé nem cabeça. Portanto, mesmo sem saber desse julgamento, tinha de ir com calma e não se empolgar. 

Foi deixando alguma ideia florescer em sua cabeça para ir aos poucos digitando no computador. E não é que nada surgia? Escrevia sua coluna rapidamente, pois se tratava de temas cotidianos, as chamadas ‘crônicas crônicas e agudas’, mas para escrever ficção emperrou. 

Pelo dia 20 teve uma gripe muito forte e ficou de cama e lerdo da escrita. Até a coluna deixou de sair, justificando ao editor que não tinha condições de cumprir o acordado. Normalmente escrevia em casa, imprimia e entregava pessoalmente ao editor do jornal local, o Correio do Povoado, que teve tiragem máxima de mil exemplares quando saiu a notícia de que o filho do prefeito foi pego traficando drogas junto a uma quadrilha na capital. Depois que o editor lia, o texto ia para a edição e para a gráfica, juntando-se aos demais textos para sair a edição do jornal semanal. Sim, era uma vez por semana. Aqui é cidade pequena, oras! E exatamente por isso estava motivado a participar daquele concurso. Seria a primeira vez que teria alguma chance de ver seu nome além da coluna semanal e do papel chinfrim impresso tempos atrás. Mas a escrita não saía.

Restabeleceu-se no dia 27 e o pânico bateu à porta. Vasculhou a nova edição da revista literária para ver se havia alguma possibilidade de prorrogação do prazo e se deparou com a informação de que até aquele momento pouquíssimos trabalhos haviam sido enviados. Euforia. A chance para ele seria maior. Mas cadê o texto que não sai? 

Ele se acostumou há algum tempo a digitar diretamente no computador seus escritos. Apenas poesia dava-se ao luxo ou ao charme – como queiram – de escrever primeiro num bloquinho de anotações, com caneta azul, e, depois de rabiscar e rebuscar um pouco, transferir para a via digital. Ou deixava ali mesmo sobre o papel dizendo que a ‘fotodegradação com amarelamento’ do papel traria mais seriedade e sobriedade ao que estava escrito. Mas textos longos, como suas colunas, iam sendo diretamente digitados. E depois de tantos textos ou fragmentos perdidos, sabia que os tinha de salvar constantemente.

Último dia do mês e apenas algumas linhas brilhavam na tela do computador. E não gostou de nada que estava escrito. Que droga! (na verdade, proferiu um palavrão, impublicável). Até tomou uma cachaça para ver se as sinapses se descontraíam e deixavam um pouco de verve artística fluir pelos neurônios. Nada. A noite estava chegando e ele relia o regulamento do prêmio: ‘somente serão aceitos os contos enviados até a meia-noite do último dia do mês, usando exclusivamente o site da empresa patrocinadora do concurso’. Menos de cinco horas agora para gerar essa coisa. De outras vezes, recebia uma centelha de enredo na cabeça e o simples ato de começar a digitar fazia com que aflorasse a coisa toda. Desta vez não funcionava. Nove e quinze da noite e o pânico fazia seus dedos tremerem. Começou a digitar a esmo para ver se saíam ao menos palavras com nexo. Qual o quê! Quase desistindo, vendo definhar a chance de ter seu nome publicado em algum jornal da capital ou espalhado pela internet, já 11 horas de noite de lua cheia, teve um lampejo. 

— Sim, é isso! Vou escrever sobre essa minha barreira para escrever um simples conto. Isso somente acontece comigo por estar nessa cidade bucólica, sem outras inspirações conflituosas para produzir um enredo digno de conto bem escrito.

E começou pelo dia em que viu o anúncio na revista, passando pelas dificuldades de elaborar um enredo, mencionou a forte gripe, o desespero, a desilusão, a quase desistência e, por fim, a inspiração que o redimiu e pôde escrever e enviar o texto para o concurso.Voltamos ao FIM que ele acabara de colocar no final. É claro, foi mais como uma demarcadora de território do que necessária essa palavra. Apagou-a. Quinze para a meia-noite. Salvou essa última versão, procurou no regulamento os detalhes de espaçamento, tipo de fonte, tamanho das margens, quantidade de páginas. Deixou tudo bonitinho e releu tudo para aparar uma vírgula aqui ou mudar uma palavrinha ali. Pronto! Tinha exatos cinco minutos para acessar o site e enviar a chave da porta da felicidade. Cinco minutos para o início de uma nova relação com sua escrita. Um intervalo pequeno de tempo para resgatar um pouco do sentido de vida que já teve muito no passado e ausente hoje. E ao iniciar o acesso ao site… breu, tudo escuro. Acabou a energia  elétrica.


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