Interessante recomeçar

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Com o barulho das sirenes de viaturas em perseguição, despertei zonzo, com pequena dor no pescoço. Olhei para mim e vi que estava sujo, jogado ao fundo de um beco escuro, ladeado por muros altos encimados por grades melancólicas. Os prédios escuros ao lado indicavam que não havia movimentação por perto. O silêncio era sutil, restando o ruído de fundo de uns motores lembrando que existia transporte, refrigeração e automação na cidade. À frente, na saída do beco, a luz da rua se fazia presente e, apesar de fraca, me ofuscava e irritava. Levantei-me, olhei ao redor e procurava por algum elemento que explicasse o que acontecia.

Saí cambaleante pela rua. Era alta madrugada, pouco movimento de veículos. Ninguém andando. Não reconheci o lugar, mas três quadras adiante cheguei a uma avenida com os típicos canteiros de tulipas. Sim, estivera aí antes. Quando? A cabeça deixou de pesar e a tontura passara. As imagens de um passado recente começavam a pipocar na mente. Mas parecia que se tratava de fatos muito antigos, de outra vida… 

Era uma festa agitada com gente toda estranha, esguia, cabelos compridos, pesada maquiagem, óculos escuros. Preto era a cor dominante. Nenhuma comida, mas muita alegria, risos, gargalhadas estridentes – que até poderiam ser confundidas com exaltações de pânico. Som fúnebre, mas muita movimentação pelos cantos, entrelaçamento de pernas, braços, cabeças, línguas. Já estava bêbado quando cheguei e o meu amigo me levou lá por ter ouvido, não sei de quem, que aconteceria tal encontro. A maior badalação do ano – prometiam. Chamavam de festa. Logo me agarraram, me chuparam e tiraram metade de minha roupa. Sentia nojo e gozo, simultaneamente, como uma única sensação. Delirava. Um cheiro forte e fétido no ar se misturava com correntes de ar adocicadas. Pensei em abandonar aquilo, mas fui seguro. Mãos pequenas, alvas, rígidas, fortes. Um aperto quase penetrante no meu antebraço. O último rosto de que me lembro possuía uns olhos ébanos, profundos e muito avermelhados no globo ocular. Macho ou fêmea? Pesadas drogas? Não sei. A pancada na cabeça, como de dentro para fora, veio logo em seguida. Junto com a dor no pescoço e a sensação de que alguma coisa fluía de mim. Parece que comecei a sonhar, como se me despojasse dos acontecimentos vividos.

A lembrança antes de eu aparecer naquele beco termina aí. Já sem qualquer dor, caminhei mais um pouco, passando pelo lixo acumulado em frente a um restaurante vegetariano. Aquilo me deu náuseas – o cheiro de restos de verduras e legumes azedando. Como isso? Duas ratazanas circulavam por ali. Estranhamente, tive fome. Mas não sentia que vinha do estômago, da barriga. Vinha de dentro do maxilar. E segui com os olhos aqueles dois exemplares de escória animal, mas com sentimento de posse, com um forte interesse no caminhar de um deles, o maior, e – que coisa – com enorme desejo de pegá-lo!

Tudo começava a tomar forma em meu cérebro enquanto acariciava aquele rato entre os dedos das minhas mãos. Minha mente era maior que meu corpo. Não estava mais sujo. Via o que se descortinava diante de mim e não tive qualquer repulsa em aproximar aquele bicho de minhas narinas e de meus dentes. Uma visão perfumada do mundo, escura, ficou estampada naquele ato.

E agora, caminho sem sentir o peso do corpo. Flutuo e diante de um espelho quebrado no monte de entulho em outro beco, ao não ver minha imagem refletida, senti a presença dos caninos se apertando dentro de minha boca, prazerosamente, e o gosto férreo, porém doce, do sangue da ratazana que acabara de ter a vida por mim ceifada. Preciso de vítimas maiores. Será muito difícil conviver – e noturnamente – com essa imortalidade adquirida.

Adilson Roberto Gonçalves – Pesquisador da Unesp, publicou contos e poemas em antologias. Tem o livro de poesias “O eu e o outro” publicado em 2016 pela LiteraCidade e integra instituições culturais no interior paulista, dentre eles a Sociedade Vozes Literárias e Grupo de Escritores, vinculados à Academia de Letras Rio-clarense (Alerc-SP).


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