A Bruxa da Montanha

Miserável e decadente é a vida que não nos permite ficar ao lado da pessoa que amamos. A prioridade semanal é o trabalho, longe de casa. O casamento é secundário, ocorre após às dezoito com o tempo que sobra, migalhas que caem da mesa (antes da mundial revolução trabalhista dos anos 30 era pior). Não nos roubam apenas o tempo, também nos privam da companhia da pessoa amada. E isso não basta, também exigem de nós e nos ensinam que devemos ser gratos, porque graças a esse roubo duplo, do qual somos vítimas, não precisamos roubar para sobreviver, como aqueles que são ainda mais desafortunados que nós.

Há sempre alguém mais desgraçado, com uma vida mais difícil que a nossa, e isso é usado para nos ameaçar. É dessa forma que continuamos um Sísifo a empurra a pedra da segunda-feira, aguardando a próxima sexta, eternamente, longe de quem é familiar, perto de quem é estranho, em troca de um punhado de sal, o salário. Um dia, talvez, esse sal perca o sabor, e só sirva, enfim, para ser pisado pelos homens, mas ainda estamos muito distantes disso.

“Venha, criança, venha conversar comigo”. Ouço-a me chamar de sua estreita caverna em forma de vulva, no topo da montanha de obsidiana, tirando-me um pouco da triste reflexão sobre a assaltante que chamam de segunda-feira. Subo de manhã, entre a quarta e quinta hora, com ajuda do café, moderna compensação líquida pela tragédia que chamam de mercado de trabalho. A voz da bruxa é tudo o que tenho antes de ser roubado por oito horas. Noite anterior, eu havia me largado na cama como carcaça vazia, sem sangue, pronta para ser cortada e embalada em plástico. Se não fosse por ela, a Bruxa da Montanha, continuaria carne embalado ao amanhecer.

“Venha, criança, continue a subir, venha conversar comigo”. A entrada da caverna é selada por uma cortina de pequenos ossos atados a cordões, que colidem entre si quando passamos por eles. “Sei que você nem se lembra de quem é”, me diz girando a colher de pau no caldeirão, “mas é só tomar um pouco disso e vai se recordar”. Em meio às paredes mal iluminadas com velas e decoradas com misteriosas runas, ela me oferece um pote cheio, como uma sinistra Circe, mas não temo me tornar animal domesticado, a modernidade já fez isso comigo. Sem nada a perder, bebo a grandes goles, e então vou me lembrando.

A Reminiscência, teoria grega provavelmente roubada da Índia, diz que encarnamos esquecidos de vidas passadas, então tudo o que aprendemos não passa de memória. Desconcertado, concluo que minha situação é ainda pior. Na modernidade, não bebemos das águas do Lete apenas quando morremos. Ela nos faz beber do esquecimento todo final do dia, uma pequena experiência de morte. Quando acordamos, que é outra pequena experiência, mas de ressurreição ou reencarnação, não nos lembramos mais de quem somos. Por isso, a necessidade desse trabalho de mouro logo de manhã, tomar café e subir a montanha negra para conversar com a Bruxa e beber de seu caldeirão.

“Está se lembrando, criança, de quem é?”, enquanto bebo olhando suas rugas e ancestrais trilhas esculpidas na pele, surge a lembrança de quem sou e, como consequência, percebo que fui roubado de mim mesmo, e isso me faz transbordar de raiva! “Acalme-se, criança, estou aqui para isso, te lembrar, e estarei sempre que precisar. Nasci com a modernidade, sou filha da revolta dos românticos e simbolistas. O veneno sempre carrega seu antídoto”.

Como isso pôde acontecer? Recentemente éramos livres, donos do tempo e de nós mesmos, próximos da natureza e de quem amávamos. A mulher não se depilava, o homem não cumpria prazos, e as crianças não perdiam a infância na escola. Nós aprendemos a naturalizar esses aquários e gaiolas, mas nenhum deles é natural, porque eles têm história. E se uma coisa tem história, ou seja, se transformou ao longo do tempo, não nascendo pronta, então é apenas uma possibilidade entre outras.

Em meio à distópica modernidade, que poderia ter sido tantas outras coisas, minha última esperança é a Bruxa da Montanha, que me lembra da época aurora, quando a humanidade, em seus primórdios, ainda tinha tempo de olhar as estrelas. Queria uma vida mais simples, mais autêntica, mais próximo de quem amo, com menos pressa e consumo. É lógico que no passado havia a dor de dente, e que não tínhamos remédio para ela. Mas do que adianta os analgésicos, se a dor da alma ninguém dessa maldita modernidade consegue tirar? Oferecem-nos apenas antidepressivos e shopping centers, para aplacar esse nosso vazio que cresce a cada dia, mas só após as dezoito horas!

“Minha senhora, estou me lembrando de quem sou”, respondo à Bruxa, “consciente estou de que fui roubado, que esse mundo, tal como me apresenta, é ofensivo e agressivo às estruturas de meu ser. Mas, e agora, o que faço?”, pergunto tamborilando o caldeirão com os dedos, dono de minha encruzilhada, perdido e ansioso.

“Se você percebeu, criança”, ela se levanta com dificuldade, aproximando-se, “que tem sido roubada pela modernidade, que troca a presença da pessoa amada por moedas, que trancafia seu coração como um pássaro triste, então precisa lutar para se libertar dessa penitenciária, construir uma rota de fuga. O que mais um detento poderia querer?

“É um projeto lento e incerto, Bruxa, eu mal sei se conseguirei”.

“Essa é justamente a natureza de todo sonho de fuga prisional. É um projeto lento e, acima de tudo, incerto, que convive com as possíveis consequências. Mas uma coisa não vai te deixar desistir nunca”.

“Que coisa é essa, minha querida Bruxa?”

“Você não tem escolha. Escolher entre liberdade e infâmia não é escolher. Uma cidade sitiada não escolhe nada, ela só luta! Termine o café, desça da montanha, e planeje sua fuga. Amanhã estarei aqui para te lembrar disso, e depois de amanhã, e depois desse dia também. Se um dia você deixar de subir aqui, concluirei que você foi vencido pelo esquecimento da modernidade, e que aceitou sua condição”.

“Não posso, Bruxa, não posso aceitar essa vida!”

“Então, vá viver sua verdade, criança, por mais dolorosa que seja. E um dia você poderá ser a Bruxa na Montanha de alguém, um Diógenes com a lâmpada à procura de homens, ou um Chaplin em meio às máquinas à procura de humanidade. Eles também tiveram suas bruxas. Mas, lembre-se: subir a montanha de obsidiana, isso, sim, é sempre uma escolha. Cuide de nossa relação, criança”.

“Juro por tudo o que é mais sagrado, Bruxa, que sempre subirei sua montanha. Sou uma cidade sitiada, não posso desistir de lutar por mim mesmo.”

E você? Qual foi a última vez em que conversou com sua Bruxa?


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