Por Damaris Bortolozzi
Você não é a vítima. E eu posso provar.
Essa frase pode soar estranha, até insensível. Pode provocar incômodo, negação, raiva. Mas não estou aqui para invalidar o seu sofrimento — muito menos para culpá-lo. Minha intenção é outra: apontar uma armadilha sutil, silenciosa, quase invisível, mas incrivelmente poderosa. Uma estrutura psicológica que rege nossas relações, contamina nossas emoções e repete padrões que não compreendemos — e por isso mesmo, não conseguimos mudar.
Essa armadilha tem nome: Triângulo do Drama.
Desenvolvido nos anos 60 pelo psiquiatra Stephen Karpman, esse modelo descreve uma dinâmica disfuncional que acontece nas relações humanas. É um tipo de “jogo invisível” no qual, sem perceber, muitas vezes ocupamos um dos três papéis principais — Vítima, Salvador ou Perseguidor — e vamos alternando entre eles numa espécie de dança emocional. A peça é encenada todos os dias em nossas vidas: no trabalho, nas amizades, nos relacionamentos amorosos, nas famílias. E embora pareça familiar, ela termina sempre da mesma forma: com ressentimento, culpa e frustração. Vamos entender os personagens.
A Vítima: o “pobre de mim”
Ela é o centro do drama. Não necessariamente quem mais sofre, mas quem se sente impotente, injustiçada, à mercê das circunstâncias. Sua frase principal é: “Não tenho culpa, estou sofrendo.” A Vítima acredita que não tem escolha, não tem saída, e que os outros — ou a vida — estão sempre contra ela. Embora pareça frágil e inofensiva, seu poder oculto é manipular a atenção, escapar da responsabilidade e atrair salvadores que assumam a tarefa de resolver seus problemas. Seu sofrimento é real, mas sua postura mantém o problema vivo. Ela não busca soluções — busca aliados.
O Salvador: o herói que ninguém pediu
Este é o personagem que vive para ajudar. Sua frase principal é: “Deixa que eu resolvo pra você.” Aparentemente generoso, o Salvador tem uma motivação escondida: ele precisa se sentir necessário. Seu senso de valor está ligado a ser útil, mesmo que ninguém tenha pedido sua ajuda. Ao assumir os problemas alheios, ele se esquece — ou evita — de lidar com os próprios. O resultado? Mantém a Vítima na dependência, não por maldade, mas por uma necessidade emocional disfarçada de bondade. O Salvador se cansa, se frustra e muitas vezes acaba se sentindo usado — tornando-se, então, uma nova Vítima.
O Perseguidor: o juiz implacável
O Perseguidor acusa, cobra, critica. Sua frase favorita é: “A culpa é toda sua.” Age com superioridade, parece ter todas as respostas. Mas, por trás da agressividade, esconde-se o medo da própria vulnerabilidade. O Perseguidor ataca antes de ser atacado. Sente-se seguro quando está no controle — e, para isso, precisa de uma Vítima para apontar o dedo. O irônico é que, muitas vezes, ele começou como Salvador — mas ao ver sua ajuda ignorada ou desvalorizada, transforma-se no algoz.
O ciclo vicioso
O mais intrigante desse jogo é que ele não é fixo, os papéis mudam com frequência.
Pense na seguinte situação: você desabafa com uma amiga, e ela assume imediatamente o papel de Salvador, oferecendo conselhos e tentando resolver tudo por você. Mas você, por cansaço ou insegurança, não segue nenhuma sugestão. Ela então se irrita e diz algo como: “Eu tento te ajudar, mas você não colabora!”. Pronto: virou Perseguidora. E você, que se sentia Vítima do seu problema, agora se sente vítima dela também, ou então, você começa no papel de Salvador, tentando ajudar alguém querido que vive em crise. Depois de tantas tentativas frustradas, você se irrita e começa a criticar duramente, pois vira Perseguidor. E, quando é acusado de “não ajudar mais”, se sente injustiçado — e se transforma em Vítima.
Assim, o ciclo se repete. Ninguém ganha. Todos perdem.
Como aprendemos esse jogo?
Esses papéis não surgem do nada. São aprendidos, muitas vezes na infância, como estratégias inconscientes para obter atenção, segurança ou aceitação. Um filho que só recebe carinho quando está doente pode aprender a se manter em posição de Vítima para se sentir amado. Uma filha que observa os pais sempre cuidando de todos pode internalizar que só é valorizada quando se sacrifica. Um adolescente criticado em casa pode crescer acreditando que precisa atacar primeiro para não ser ferido. O jogo começa como sobrevivência emocional. Mas se torna vício relacional.
Importante dizer: adotar o papel de Vítima no Triângulo do Drama não é o mesmo que ser uma vítima real. Pessoas que enfrentam abuso, violência, desigualdade ou injustiça estão vivendo situações que exigem acolhimento, proteção e direitos — não análise de dinâmicas inconscientes. O Triângulo se aplica às nossas relações do cotidiano, àquelas situações recorrentes em que nos sentimos presos sem entender por quê.
Como sair do jogo?
A saída é simples — mas não é fácil. Envolve consciência, autorresponsabilidade e escolha.
Reconheça o papel que você costuma adotar. Você se vê frequentemente tentando salvar os outros? Vive se sentindo injustiçado(a)? Critica com frequência esperando que os outros mudem?
Observe quando os papéis mudam. Uma briga em casal pode começar com um como Vítima e outro como Perseguidor — e terminar com os papéis trocados. Esse giro rápido é o sinal do jogo em ação.
Assuma sua responsabilidade sem culpa. A ideia não é se julgar, mas se libertar. Quando você entende que pode escolher sair do roteiro, você deixa de repetir o script.
Pratique novos papéis conscientes. Em vez de Vítima, adote a postura de protagonista. Em vez de Salvador, torne-se um apoiador que acredita na autonomia do outro. Em vez de Perseguidor, exerça a comunicação assertiva.
Saia do palco. Você não precisa participar de toda encenação emocional que se apresenta. Silêncio, pausa e limites são formas poderosas de interromper o ciclo.
O Triângulo do Drama é sedutor porque nos oferece identidade, papel, pertencimento. Mas ele cobra um preço alto: o da liberdade emocional. Enquanto estivermos presos ao jogo, não nos relacionamos com as pessoas de verdade — mas com as máscaras que elas (e nós) usam.
Sair do jogo não significa parar de sentir, nem virar alguém frio e racional. Significa escolher relações mais verdadeiras, onde há espaço para vulnerabilidade, crescimento mútuo e maturidade emocional. Significa aprender a dizer “sim” sem se anular, “não” sem se culpar, e “eu preciso de ajuda” sem cair na dependência.
No fim do dia, quando as luzes se apagam e não há mais ninguém para assistir…
Quem é você, de verdade, quando sai de cena e deixa de interpretar?
Foi numa conversa despretensiosa e corriqueira com um querido amigo, que ouvi a frase intrigante “Deixe o pacote comigo, na rua onde tem a estátua do soldado de mochila! Trabalho lá”.
Estranhei a localização, pois a única estátua de soldado que conhecia, era aquela em homenagem ao soldado desconhecido, em referência aos combatentes de Rio Claro, na Revolução Constitucionalista de 1932, localizada na entrada do Cemitério Municipal. Soldado este, sem mochila.
Ao confirmar a entrega na entrada do cemitério, ouvi nova explicação “Na entrada do cemitério não! Perto do postinho de saúde, no caminho da fábrica de frango. Forcei a memória para lembrar da tal estátua, mas não encontrei qualquer lembrança.
Noutro dia, lá estava, conforme o combinado, com o pacote em mãos. Durante nova conversa descontraída, acabei por indagar a respeito da estátua. Com toda naturalidade, firmeza e indignação por meu esquecimento e desatenção, apontou-me.
A tal avenida é uma via que tem início na altura do número 650 da Avenida 29 e se estende aproximadamente até o cruzamento da avenida 78 com a rua José Felício Castelano, no bairro São Miguel. Ao longo dela, temos ao homenageado, esculturas que se repetem em diversos pontos, como se o próprio estivesse por ali caminhando.
Afastei-me da referida estátua, a verificando atentamente. Pasma notei que aquele contorno de um homem, realmente podia passar por um soldado com sua mochila. Todavia, a se espalhar por quase todo o percurso da avenida, estava ninguém menos que Ulysses Guimarães, caminhando daquele jeitinho dele, de braços para trás, de mãos nas costas.
Entre risos, meu amigo e eu nos despedimos e aquela descoberta por muito me acompanhou. Não relatei a ele quem realmente era aquela pessoa. Achei genuína e bonita sua inocente visão. Ele não sabe ler e não leu a “placa legenda”, por isso interpretou do seu jeito. Era um soldado de mochila!
Mas, pensativa, queria encontrar sentido em Ulysses soldado. Tinha que ter sentido, só para um dia poder contar para meu amigo que, de alguma forma, ele tinha razão.
Ulysses, que nasceu em 1916 e fez a passagem em 1992, viera ao mundo em Itirapina, quando o município ainda compunha o nosso (Rio Claro–SP) na vila Itaqueri da Serra. Quando adulto, fora advogado, professor, escritor e político. Esteve presidente da câmara dos deputados por três períodos, foi candidato a presidente da república e dedicou-se, junto a seus companheiros, à redemocratização, as chamadas “Diretas já”. Porém, seu feito mais conhecido foi presidindo a assembleia nacional constituinte em 1987 e 1988, onde com outros tantos, teve a oportunidade de compor a carta magna da nação.
A carta cidadã, como ele gostava de chamar, é a Constituição até hoje vigente. Ela foi elaborada a partir de diversos temas que afligiam os brasileiros, recebendo emendas de toda parte desta terra Pindorâmica. Foram escritos direitos e deveres muito bem definidos e explicados, para mudar a vida que se vivia, em vida democrática.
A carta também estabeleceu os três poderes (executivo, legislativo e judiciário), dando a eles independência ao pretender equilíbrio e harmonia na governança do país, depois de um período de vinte e um anos de ditadura militar. Ditadura militar, foi um regime autoritário que entrou em vigência em abril de 1964 e seguiu até março de 1985, por meio de um golpe. Período onde as liberdades eram restritas, com violações dos direitos humanos e severas perseguições políticas. Assim, essa carta foi um oásis em meio ao deserto.
Também consta na história, que Ulysses fez um belíssimo discurso, quando da promulgação desta constituição em 5 de outubro de 1988. Para finalizar seu discurso afirmou “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil.” levando a multidão que o ouvia emocionada, às lágrimas de alegria.
De forma póstuma (e também por isso), após aprovação no Congresso Nacional, o nome de Ulysses foi inscrito no Panteão dos Heróis da Pátria Brasileira (lei federal n.º 13 815, de 24 de abril de 2019) ao lado de pessoas como Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Luís Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias) patrono do Exército Brasileiro e Joaquim Marques Lisboa (Marquês de Tamandaré) patrono da Marinha do Brasil.
Isto posto, obtive a singela permissão que precisava para a afirmação que pretendia. Ou seja, se Ulysses lutou bravamente por conquistas extremamente significativas representando inúmeros brasileiros, se ao lado de componentes do exército e da marinha está listado seu nome como herói da pátria brasileira; de soldado, pode ser chamado. Soldado que lutou com bravura junto aos demais “pracinhas”, pela liberdade dos brasileiros, sustentando por fim e com orgulho em sua mão estendida aos céus, como arma, nossa carta cidadã. Nossa arma contra a ditadura à brasileira.
Assim, em posse das informações necessárias e após um encontro com Ulysses Guimarães (estátua solitária fixada no salão verde no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados – Brasília–DF) no último fim de semana, finalmente propus ao meu amigo retomarmos a conversa sobre sua tal estátua. Por telefone, conversamos sobre o assunto. Muito cuidadosamente, expliquei-lhe quem era seu soldado. Ele demonstrou genuíno interesse e total atenção.
Finalizado meu discurso, ele permaneceu em silêncio por algum tempo, depois finalmente exclamou “Entendi! Mas parecia um soldado com mochila nas costas! Sabe? Esse Ulysses Guimarães pode realmente ser chamado de soldado. Ele foi guerreiro, batalhador e campeão vencedor de obstáculos. E é muito conhecido, caminhando pela estrada com seus dois braços para trás, pensando na vida e em como melhorar o Brasil.” Nos despedimos, encerrando a ligação.
Assim, sem eu precisar dizer, meu amigo e eu, chegamos à mesma conclusão. Pudemos afirmar que temos um soldado que caminha na avenida Ulysses Guimarães. Um soldado que não deve ser esquecido, antes merece ter sua história conhecida, lembrada e contada.
Quanto à mochila, não temos qualquer evidência que nos permita afirmar que Ulysses carregava uma a tira colo. No entanto, dando asas à imaginação, podemos pensar que sim e pensar ainda mais. Pensar que dentro dela levava sempre sua carta especial, para mostrar a todos os que encontrava por esse seu caminho. Então, como comemoração fora de época, fora de mês, fora do dia; Viva Ulysses, o soldado de mochila!
Damaris Bortolozi é jornalista e psicóloga em formação. Atua na área da comunicação há mais de 25 anos, promovendo sempre o desenvolvimento pessoal e profissional. É integrante da Sociedade Vozes Literárias, vinculada à ALERC-SP
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