Neste segundo artigo sobre o trecho desconhecido para muitos no Brasil da viagem da frota de Cabral, daremos vida aos fatos desde a partida da Bahia até Quiloa, na África. Lembramos que a Relação do Piloto Anônimo foi atribuída a João de Sá, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, que eternizou essa tumultuada viagem que tentou estabelecer uma rota de comércio com Calicute na Índia e firmar a presença portuguesa naquele país (FRANÇA, 2020, p. 10-11).
Recordemos que dois degredados foram deixados na Bahia e “puseram-se a chorar quando da partida, sendo consolados pelos homens da terra, que demonstraram ter piedade deles” (FRANÇA, 2020). Particularmente, acredito que foi melhor para eles ficarem chorando em terra firme do que seguir viagem para Sofala…
O Cabo das Tormentas
É que a esquadra, agora com 11 navios, tinha que atravessar o temível Cabo da Boa Esperança (hoje, África do Sul). Batizado em 1488 por Bartolomeu Dias de Cabo das Tormentas, foi rebatizado pelo rei D. João II na esperança de que os navios que o contornassem estariam próximos das ricas e cobiçadas cidades da Índia (RTP Ensina, 2013).
De 12 a 22 de maio um cometa acompanhou os navegantes que enfrentaram um sábado chuvoso, mas no domingo, 24 de maio, a esquadra navegava rápido, impulsionada por um vento vigoroso… imagino que os marinheiros inexperientes pensavam que logo chegariam a Sofala, enquanto os experientes estavam inquietos porque temiam que algo pior estivesse por acontecer, até que “subitamente veio um vento tão forte[que perdemos] sem que pudéssemos oferecer qualquer ajuda, quatro naus com tudo a bordo” devido à imensa tempestade com ondas gigantes, que durou vinte dias! (FRANÇA, 2020). Será que a expressão “dar cabo de algo ou de alguém” vem das tragédias dessa região?
Sofala
De luto pelos amigos tragados pela tempestade, os marinheiros dos sete navios restantes rumaram tristes para a costa oriental da África em busca de Sofala (então colônia da Arábia, hoje Moçambique). Chegaram lá em 16 de junho e pescaram, mas, como “havia muitos doentes a bordo, ninguém desembarcou” (FRANÇA, 2020). Imagino que a maioria dos doentes estava com escorbuto devido à dieta pobre em alto mar, sem as vitaminas de frutas, verduras e legumes frescos.
Depois, navegaram para o norte e constataram “que essa terra é muito povoada” (FRANÇA, 2020) e avistaram dois barcos mouros (árabes) ancorados, carregados com ouro e que iriam para Melinde. Iriam… Quando os nativos viram aqueles sete barcos cheios de canhões vindo em sua direção, devem ter entrado em pânico e gritado algo como:
– Piratas! Piratas! Vieram roubar nosso ouro! Salvem-se!!
Por isso: “Mal as naus mouras nos avistaram, puseram-se a fugir, indo dar muito perto da terra. As tripulações atiraram-se ao mar, nadando em direção à praia, e jogaram também ao mar as mercadorias que traziam, a fim de evitar que lançássemos mão delas”.(FRANÇA, 2020).
Os portugueses capturaram os dois barcos e o capitão e quando o interrogaram, descobriram que ele era mouro, dono dos barcos. Sua esposa e um de seus filhos, infelizmente, morreram afogados ao tentar escapar para a terra firme e que ele era, vejam só, primo do rei de Melinde! Creio eu que, ao ouvir isso, tanto o intérprete quanto Cabral engoliram em seco, pois estavam diante de um trágico incidente diplomático que resultou em mortes e perdas de cargas preciosas como o ouro.
E agora? O que fazer? Eles estavam indo justamente a Melinde, para visitar seu rei que era aliado de Portugal – e se essa notícia chegar ao rei de Melinde antes de nós? – deve ter pensado um Cabral em estado de choque.
Imagino que, o mais diplomaticamente possível, Cabral, ajudado por seu intérprete, “lamentou muito o ocorrido, fez-lhe muitas honras e ordenou imediatamente que os navios e tudo o que traziam lhes fosse devolvido” (FRANÇA, 2020).
Uma última pergunta, antes de terminar a conversa de capitão para capitão, trouxe bons resultados, pois o viúvo disse a Cabral que a mina de ouro era do rei mouro da ilha de Quiloa e que os portugueses já estavam bem próximos. “O capitão deixou, então, que o mouro partisse e seguimos em frente” (FRANÇA, 2020).
Quiloa (Kilwa – hoje Tanzânia)
A caminho da mina de ouro, em 20 de junho, os portugueses chegaram à Ilha de Moçambique, próxima da costa, com ricos mercadores e um excelente porto onde compraram comida e água e ajustaram um piloto para os levar até Quiloa.
Outro navio se perdeu e apenas seis chegaram a Quiloa em 26 de junho: “A ilha de Quiloa, [perto da] terra firme, é pequena e agradável. As casas são altas como em Espanha e[…] há ricos mercadores, detentores de muito ouro, prata, âmbar, almíscar e pérolas. Os homens [são] negros, vestem roupas de algodão fino e de seda [e] muitas outras finas coisas”.(FRANÇA, 2020).
Lá, Afonso Furtado conseguiu um salvo-conduto para sua embaixada tentar estabelecer comércio entre Portugal e Quiloa e para um encontro entre Cabral e o rei em batéis, porque o rei de Portugal não o autorizou a desembarcar em Quiloa. No dia seguinte, o rei de Quiloa num batel, Cabral em outro… ambiente festivo… músicos tocando instrumentos variados em ambos lados… numa aparente confraternização… de repente, as bombardas dos portugueses iniciaram o bombardeio com tiros de festim e “o barulho soou tão alto que tanto o rei como aqueles que o acompanhavam ficaram estupefatos e assustados” (FRANÇA, 2020).
A quinhentos e vinte e cinco anos de distância, “vejo a cena” e suponho que o rei e seus conselheiros, entreolhando-se ensurdecidos pelos canhões, gritavam um para o outro:
– Rei, meu senhor! Pensou o mesmo que eu desta demonstração?
– Sim, caríssimo Conselheiro! Esses canhões não fazem só barulho, eles também podem destruir nossas muralhas e casas e também nos matar! E nosso rico reino cairá nas mãos desses infiéis!
– Como podemos nos livrar deles, meu sábio Conselheiro?!…
Referências:
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A Relação do Piloto Anônimo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020 (e-book). RTP Ensina. Bartolomeu Dias Dobra o Cabo da Boa Esperança. 19 set. 2013. Disponível em: https://ensina.rtp.pt/artigo/bartolomeu-dias/. Acesso: 3 ago. 2025.
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