Panem et cetera

Se tem uma coisa que realmente eu sei fazer bem, com alma e paciência, é forjar no trigo o milagre do pão. Não é apenas uma habilidade que desenvolvi com o tempo — é quase um ofício sagrado, algo que se aperfeiçoa com dedicação e que carrega uma dose de encanto. Fiz até um curso, anos atrás, mas aprendi de verdade foi com o tempo, com as mãos sujas de farinha e a mente atenta ao menor sinal da massa. Há quem diga que é fácil, que qualquer um pode fazê-lo bem se tiver um mínimo de boa vontade e uma receita nas mãos. Mas eu digo: não é tão simples assim. A panificação é tanto uma ciência quanto uma arte. Exige precisão, sim, mas também exige intuição, escuta, entrega. Não basta apenas misturar os ingredientes nas proporções certas, nem seguir instruções como quem monta um móvel. Tampouco basta sovar a massa por uma quantidade exata de minutos. O pão não nasce da exatidão, mas do diálogo entre o padeiro e a matéria.

Fazer um pão exige conhecer as sutilezas, compreender a linguagem silenciosa dos ingredientes. É preciso saber que, quase nunca, a mesma medida de farinha, água e fermento vai gerar o mesmo resultado. Porque tudo muda: a temperatura, a umidade do ar, o humor de quem amassa. Às vezes, até o silêncio da cozinha interfere. Um gesto mais impaciente pode comprometer o resultado. Uma pausa longa demais pode torná-lo ácido. O pão é, nesse sentido, uma criatura viva, sensível, exigente. E, talvez por isso, tão fascinante.

Ah, o pão… Essa alquimia que teima em desafiar a lógica cartesiana, que não se submete aos cronômetros com docilidade. E assim também é com outras artes que, à primeira vista, parecem simples, fáceis de replicar por qualquer um. Há quem acredite que basta seguir uma receita à risca para alcançar a perfeição, sem se dar conta do tempo investido, do número de tentativas frustradas, da dedicação em cada etapa. Assim também acontece com quem ensina, com quem escreve, com quem se entrega à construção de algo significativo. Muitos pensam que dominar um conteúdo é o suficiente para transmiti-lo bem, como se a paixão, a escuta, a metodologia fossem acessórios supérfluos, dispensáveis. Ledo engano.

Da mesma forma que a farinha muda de acordo com a safra e que a umidade do ar interfere no crescimento da massa, cada empreitada humana carrega suas particularidades. Cada público tem suas próprias dinâmicas, suas necessidades singulares, seus limites e potenciais. Há nuances que só o artesão atento percebe. Um dia, a receita que funcionou maravilhosamente bem rende um produto final denso, pesado, quase inutilizável, mesmo com todo o cuidado. Em outro momento, seguindo exatamente os mesmos passos, a fornada sai gloriosa: casca dourada e crocante, miolo macio, aroma que invade a casa e a memória, gerando contentamento. É um resultado que muitos talvez atribuam ao acaso ou à sorte, como se não houvesse ali, escondido sob as crostas, o acúmulo de tentativas e escutas.

Quantas vezes nos deparamos com o bloqueio, com a matéria-prima que parece nos resistir? E vemos outros tentando moldá-la de forma apressada, com impaciência, até com desdém? Em outras situações, quantos planos meticulosamente elaborados esbarram na falta de receptividade? Surge então a pergunta inesperada, o ruído fora do previsto, o imprevisto que nos desestabiliza. E enquanto isso, muitos observam de fora, sentam-se à mesa, comem do pão, absorvem o fruto do trabalho alheio, mas sequer imaginam o processo de fazê-lo. Ignoram as mãos que sovaram, o tempo que esperou crescer, as fornadas que não deram certo.

É preciso sensibilidade para sentir a massa. Não apenas tocá-la, mas escutá-la com as pontas dos dedos. Perceber quando ela pede mais umidade, quando o glúten se formou, quando o trabalho manual atingiu o ponto ideal. Isso não se ensina facilmente em livros. É um tipo de conhecimento que se adquire com presença, com repetição atenta, com humildade. Da mesma forma, é preciso sensibilidade para entender as necessidades de cada contexto humano. Não se trata apenas de saber muito, mas de saber estar. De perceber o outro, de adaptar o ritmo, de ajustar a forma de agir. É uma escuta refinada que não se aprende da noite para o dia.

Não há fórmula mágica. Não existe atalho confiável. Existe, sim, a dedicação constante. A experimentação corajosa. O aprendizado que se constrói nos erros e nos acertos, e que não pode ser simplesmente copiado, muito menos usurpado. É uma jornada íntima, intransferível. O que se vê do lado de fora — o pão, a aula, a obra, a ideia — é só a superfície. Por trás, há horas e horas de tentativa e erro, há escolhas feitas em silêncio, há dores discretas e alegrias quase invisíveis.

E no fim de tudo, o que fica é a satisfação de oferecer algo essencial. Seja um alimento que conforta o corpo, seja uma ideia bem plantada que reverbera, seja uma obra que toca, seja um gesto que transforma. Algo que nasceu do próprio esforço, da própria visão, e que pode, sim, ser desvirtuado nas mãos de quem não respeita o processo. Ambos — o produto e o conhecimento — feitos com esmero e intenção, têm o poder de transformar o cotidiano em algo especial. Mas sua integridade depende de quem o faz, e da honestidade de quem o recebe.

Porque, afinal, o pão não se faz apenas com farinha e água. Faz-se com o tempo que se doa a ele. Com a escuta silenciosa. Com a paciência entre etapas. E o mesmo vale para tudo o mais que se faz com alma. Ensinar, criar, cuidar, escrever, curar, guiar — tudo isso exige mais do que técnica. Exige presença. Exige entrega. E, sobretudo, exige o respeito por aquilo que não se vê, mas que sustenta tudo: o processo.

Panem et cetera. O pão, e tudo o mais.


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