Um aperitivo

Se nesse exato momento você abrir um livro didático de história, em qualquer escola pública de Rio Claro, encontrará a vergonhosa denúncia de que nos Estados Unidos, na África do Sul e na Alemanha nazista vigoraram apartheids raciais baseados em hediondas teorias racistas surgidas entre os séculos XIX e XX. Mas não achará, mesmo que procure muito bem, nenhuma referência às segregações raciais ocorridas nas cidades do interior de São Paulo, especialmente em uma que tem nome de santo de festa junina e carrega, em sua bandeira, o barrete frígio da liberdade.

Existem dezenas de relatos de griôs, sábios velhinhos pretos zeladores da História Oral, que dizem que a Praça “Pública” de São João de Rio Claro era cercada por grades de ferro que tinham a função de impedir a entrada de rio-clarenses pretos em seu interior. Ela foi construída após a “Abolição” (que coloco entre aspas, porque não merece esse nome), e só foi retirada em 1920, durante a “República” que, na prática, só era republicana para uma elite branca de cafeicultores e suas cartolas pernósticas.

Os relatos vão além, afirmando que pelo menos até a revolucionária Era de Aquário, nos anos de 1960 (quando o movimento contracultural colocou o racismo em xeque no mundo todo), mesmo já sem as grades físicas, a Praça “Pública” de Rio Claro era acessada somente por rio-clarenses brancos, numa segregação racial explícita que vigorou por cerca de 70 anos após a abolição. Isso, em uma cidade que sempre se vangloriou por ser pioneira na libertação de seus escravizados em fevereiro de 1888, o que nos faz questionar quais seriam as reais intenções por trás de todo esse pioneirismo.

Essas frias grades de ferro eram a materialização mais gritante de um apartheid racial que deitava seus tentáculos por toda a cidade azul, que à época mereceria o nome de “cidade branca”: os pretos não podiam acessar o Teatro São João (futuro Teatro Phoenix), o colégio Puríssimo, a Igreja Matriz, o Grêmio dos Ferroviários e a Filarmônica; além disso, eram excluídos do mercado de trabalho (nos anúncios de jornais que diziam “prefere-se branco”), não eram atendidos nem por barbeiros e padeciam constantemente a perseguição policial quando, em seus territórios marginalizados, dançavam o tambu (que recebeu o nome de “umbigada”) e o samba lenço. A Grasifs e a Tamoyo não existem por acaso, foram criadas para que os nossos concidadãos pretos pudessem ter espaços de lazer e convivência em meio à brutal e desavergonhada violência racial plantada aqui juntamente com os eucaliptos. 

Os políticos brancos de nossa cidade, que queriam tanto uma Rio Claro que se parecesse com os EUA, a ponto de colocarem números nas ruas e avenidas para tal, de fato conseguiram fazê-la ficar muito semelhante a uma cidade do interior do Alabama após a Guerra de Secessão! A praça onde os pretos podiam passear, a da “Liberdade”, era chamada pejorativamente de “praça dos corvos”, numa referência direta às leis Jim Crow. 

Essa praça da “Liberdade”, único lugar “público” onde os rio-clarenses pretos podiam passear durante a “República”, que ficava sob a vigilância da polícia (em frente à antiga cadeia, que se tornou o prédio do Fórum), entre o antigo cemitério (atual escola Joaquim Salles) e duas igrejas católicas, foi oficialmente inaugurada por um escravagista sanguinário, talvez um dos piores homens que já caminhou sobre a Terra, o famigerado Barão de Grão Mongol, exaltado nos antigos livros de história como herói abolicionista e defensor da causa republicana, que gostava de praticar as mais brutais e inimagináveis formas de tortura em seus escravizados.

Existem muitas teses e dissertações acadêmicas que denunciam o apartheid ocorrido em Rio Claro, acompanhado da pioneira iniciativa racista do Senador Vergueiro, de trazer imigrantes europeus para “embranquecer” racialmente a sociedade, mas nenhuma referência sobre essa segregação é encontrada nos antigos livros de história da cidade, todos escritos por homens brancos exaltando outros homens brancos em ridículos almanaques.

Em uma dessas obras, de 1951, o descaramento é tão grande que o autor menciona detalhes desnecessários sobre as grades da praça, “Conta-se que toda essa ferragem foi vendida por três contos de réis, o que hoje valeria algumas centenas”, mas nada é dito sobre a função delas. Por quê?

Além de segregados, os pretos também eram expulsos até mesmos de seus territórios periféricos conforme a cidade crescia, por meio de processos de gentrificação e grilagem de terra. O Quilombo Cabana do Mato (que abrange a atual área do Lago Azul e arredores) e a famosa Chacrinha dos Pretos (que engloba a região que hoje é o bairro do Claret, e onde se localizam McDonald’s, Centro Universitário Claretiano, Rodoviária e arredores próximos da Avenida Visconde do Rio Claro – outro escravagista exaltado entre nós) foram terras roubadas da população preta rio-clarense. A Chacrinha dos Pretos, doada por uma baronesa, tinha até registro em cartório, mas isso não a impediu de ser tomada à força pela elite branca, como se não existisse justiça na cidade!

Desde o ano passado, tenho trabalhado em um romance literário que coloca esse apartheid e essa injustiça racial rio-clarense na berlinda. Em meu íntimo, esse projeto se fortaleceu ainda mais conforme fui participando dos encontros do grupo “Vozes Literárias”, espaço da Alerc – Academia de Letras de Rio-clarense, aberto ao público, que busca difundir a literatura como também unir e fortalecer os escritores da cidade. O livro, que será lançado ainda esse ano, se chamará “O Portão da Santa Casa”, porque o grande portão de ferro que impedia a entrada dos pretos na praça pública foi parar na Santa Casa de Misericórdia, quando essa foi inaugurada em 1920. 

Esse portão também carrega um mistério dentro de si, oculto aos olhos dos não iniciados, que por meio da narrativa do livro se fará conhecido, porque é chegada a hora. Esse pequeno artigo é apenas um aperitivo antes do prato principal, e você que me lê é convidado de honra para a ceia!

Também está convidado para participar dos encontros do Vozes Literárias, que ocorrem a cada quinze dias, nas tardes de sábado, no Gabinete de Leitura, localizado na Avenida 4, entre as Ruas 5 e 6, no Centro. Venha e traga seu texto para dividir conosco, porque nem só de pão viverá a mulher e o homem nessa quaresma!


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