A palavra alicate é muçulmana. Nasceu na península arábica e foi parar em outra, a ibérica, porque os árabes dominaram meio mundo com sua expansão militar, que contornou o norte da África e entrou na Europa através da região hoje chamada Portugal. Se não fosse pelos germânicos francos, devotos de Odin convertidos ao cristianismo, mal haveria cristãos.
Na batalha de Poitiers, ano 732 do calendário cristão, os francos barraram o avanço muçulmano na Europa por meio de uma peripécia de Saci. As tropas do islã eram superiores, dotadas de cavalaria poderosa e disciplinada, que carregava a bandeira do jihad e afiadas cimitarras. Os pobres francos, por sua vez, mal conheciam a tecnologia do estribo. Seu exército era composto de uma infantaria cristã simples como pomba, porém astuta como serpente: atacaram as provisões árabes pela retaguarda!
Mas a Península Ibérica continuou de Maomé por séculos, e foi graças à presença da sofisticada cultura árabe que ela foi escoamento de saberes para a Europa medieval. A primeira universidade do mundo, Al-Karaouine, mãe de todas que vieram depois, fica no Marrocos, África muçulmana. Os algarismos, chamados hindu-arábicos, assim como a palavra “alicate”, foram ensinados pelos mouros da Europa muçulmana. Foi só no processo de “reconquista” que cristãos tomaram a península, e assim nasceu Portugal, que saqueou todo o conhecimento árabe, usado, dentre outras coisas, para construir caravelas!
A península se converteu ao cristianismo, porém muitas palavras, como alface, alfaiate e alicate, permaneceram muçulmanas. Assim, é seguro dizer que a palavra “alicate” não é cristã, apesar de cristãos usarem a ferramenta com frequência para arrancar unhas de dedos em confissões, se for a vontade de Deus.
Um alicate pagão mais velho que Jesus e Maomé, que batizei de “Alicate de Bartolomeu”, chegou até nós por meio de minha esposa, pescadora cheia de mistérios ancestrais que cheiram ao mar Egeu. Não a acompanho nessa antiga arte, mas ajudo a carregar a bagagem. Também levo tinta e papel para escrever enquanto ela pesca.
Talia Caes e sua mãe, minha sogra, nasceram no dia de Iemanjá, deusa africana das águas. Além disso, seu sobrenome, Cais, é como chamam o estacionamento das embarcações. Minha aquática esposa vem de antiga linhagem de pescadores, que vai do pai, Vagner, até o avô, Alfredo, chegando ao mais misterioso ancestral, o mítico bisavô Bartolomeu, filho de imigrantes italianos e fenícios.
Esse nome antigo que cheira à mar mediterrâneo, enrolado em algas e incrustado de corais, comum entre piratas e corsários, que minha esposa carrega no sangue e a faz usar o verbo “pescar” a cada quatro ou cinco palavras que diz, não pode ter vindo só de italianos. Além de ser filha de Iemanjá, também é bisneta de Dogon, o deus-peixe senhor dos navegadores fenícios. O lendário Bartolomeu, bisavó de minha esposa-peixe, lhe deixou um presente há trinta anos.
Nos anos noventa, alguém derrubou um alicate dentro do rio Mogi-guaçu, na cidade de Pirassununga. Mas esse alicate é mais antigo, porque seu modelo é estrangeiro, de ponta fina, produzido nos anos setenta. Em meados de 2000, Vagner, meu sogro-pescador, encontrou o alicate nas águas, totalmente incrustado de ferrugem. Levou o presente de Bartolomeu para a antiga Fepasa, onde trabalhava. Utilizou máquinas da empresa para restaurar o objeto às escondidas, e foi dessa forma que ele chegou até nós, um alicate fenício, árabe-muçulmano, português-cristão, de Pirassununga, restaurado nas oficinas de trem de Rio Claro!
Tem aparência antiga e carcomida, cheio de furos que o fazem lembrar corais das profundezas. Carrega energia abissal que levaria alguém a dizer que foi usado no Holandês Voador, por sua tripulação desconjurada por Poseidon ou outro deus furioso das águas. Minha esposa, que é filha da africana Iemanjá, bisneta do fenício Dogon, usa o Alicate de Bartolomeu para retirar o anzol da boca dos peixes que pesca.
Carne segurando ferro para retirar ferro de outra carne, desde a época dos fenícios de Cartago! Humanos e peixes numa dança antiga e ancestral, abençoados e amaldiçoados por demônios das profundezas. Irmão caçando irmão, homem caçando peixe. E quando vejo o brilho nos olhos de minha esposa ao tirar um irmão da água, sinto medo dela.
Identifico-me com o peixe, porque tenho guelras literárias, não posso ficar sem escrever, que sufoco. Nesse mundo de predadores e segundas intenções, onde o que parece suculento e inofensivo esconde afiado anzol, a escrita me oferece um lugar seguro. Propagandas, ofertas sedutoras e palavras macias, escondem pescadores.
O velho Bartolomeu me censuraria por tal reflexão, gritaria com voz gutural: “Lugar de minhoca é no anzol, não na cabeça, seu moleque”. Conheço a personalidade desse terrível ancião, porque conversei com ele, aquele antigo pirata árabe ítalo-fenício! Apareceu para mim no Lago Azul, como um Jonas que acabava de ser cuspido pelo peixe de Jeová. Sua barba e cabelos, molhados e empapados, estavam misturados com algas e percevejos, e cheiravam peixe podre. Esparramavam-se como uma cachoeira branca que escondia, em parte, sua pele roxa incrustrada de corais; e a boca, cheia de anzóis pendurados, de um roxo mais escuro que o da pele, bradou mostrando dentes podres:
– Moleque! para a sua sorte, abençoo sua união com minha bisneta. Gostei um pouco de você!
– Obrigado, Bartolomeu!
– Também te dou salvo-conduto – e deu uma pausa para tossir, tosse antiga e pavorosa – para mostrar aos escritores do Gabinete de Leitura meu antigo alicate. Mas tem uma condição, moleque!
– Sim, Senhor da Águas!
Levantou seu dedo indicador, com algas enroscadas e seres a andar por ele, coroado com uma unha parecida com casco de cabra. E o rosto, naturalmente severo e enrugado, adquiriu uma forma mais ameaçadora e soturna, com supercílios tão protuberantes que lembravam trincheiras da Primeira Guerra:
– Quero que você, moleque, mande um recado a eles, porque graças a essas porcarias tecnológicas de sua época, está difícil me ligar espiritualmente com os encarnados, desconectados da necrópole que chamam de passado!
– Serei seu telefone, Bartolomeu!
– Minha mensagem é essa, moleque: o que é um pescador que não pesca, ou um escritor que não escreve? É uma casa sem parede, porta, janela e teto. Se chamam a si mesmos de escritores, como eu me chamo de pescador, então precisam escrever, seus descomungados! Tornem-se quem são e escrevam!
E afundou no Lago Azul com sua horrenda barba branca que se misturava à espuma suja daquela represa poluída. Lugar que um dia já foi de pescadores e que hoje é de pedalinhos e garças. Minha esposa sempre diz que o peixe morre pela boca, mas o peixe-escritor, segundo Bartolomeu, morre quando não escreve.
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