O frasco de arnica

Salvo engano, em dois mil e dezessete, chegando para visitá-lo, o encontro sentado a macerar uma plantinha de um verde intenso. Passo a observar-lhe os movimentos, enquanto seu semblante, demonstra que está a refletir sobre tempos idos. Pergunto-lhe, então, “Vô, o que está fazendo?”

Recebo como resposta, o silêncio. Assim, compreendo que em silêncio também devo ficar, pois muito se aprende no “apenas” observar, principalmente aos nossos mais velhos que tem muito a ensinar.

Passado algum tempo destes nossos silêncios, levantou-se arrastando as chinelas e foi até seu balcão de ferramentas que ficava no rancho, frente ao seu grande e magnífico quintal de plantas e árvores diversas. Pegou uma garrafa de álcool e misturando um pouco deste álcool em um frasco já com um tanto de água, inseriu a planta. Fechou bem. Agitou. Então pronto! Deixou no cantinho.

Virando-se, pegou uma folhinha que caíra por ali e me entregou perguntando “Sabe que folha é essa?” Peguei, observei, cheirei, senti a textura. Era macia, como se fosse feita de pelos de felino, mas nenhum nome me saltou à memória. Vencida, respondi que não sabia.

Sorrindo, explicou-me que era folha de Arnica e que essa Arnica era uma planta que estava ali em seu quintal. Percebendo que fiquei na mesma, que aquele nome não me trouxera qualquer significado, procurando me fazer entender, aprofundou a explicação dizendo ser Arnica um remédio para passar na pele sem machucado aparente (corte), que para fazer chá não servia, pois diziam que para beber, era tal qual veneno.

Outro dia, após passar aquela mesma Arnica numa dor que resolveu aparecer no braço, sem saber se ainda funcionava, resolvi ler sobre ela. Eureca! Meu avô, “do alto” de seus noventa e tantos anos, estava certo (como eu nunca duvidei que estivesse). Realmente a Arnica, também conhecida como Margarida da Montanha, é uma planta ímpar, muito usada pelos antigos. Nos tempos idos, ela era usada corriqueiramente para curar, inclusive, em compressas. Planta muito conhecida e facilmente encontrada em qualquer cantinho naqueles tempos. Tempos de mais terra e menos cimento. Sendo realmente medicinal, a arnica ajuda a reduzir inflamações, hematomas e inchaços causados por batida. Alivia a dor (Anticoagulante), auxilia na recuperação de lesões na pele (cicatrização), alivia coceiras, picadas de insetos, irritações e por aí vai.

Sendo um gênero com aproximadamente trinta espécies, são duas as mais conhecidas e utilizadas. A primeira, que dizem verdadeira, nativa da Europa (Montana) e a segunda, nativa brasileira (americana). Seu nome significa “pele de cordeiro”, em referência à suavidade de suas folhas peludas, nome este, derivado da palavra do grego/latim arnakis/arnus.

Atualmente ela é muito usada na fabricação de pomadas, cremes e géis. Indicada para dores articulares e reumáticas (osteoartrite), para aliviar inchaço, no tratamento de acnes e até para dores no pós-operatório.

Mas o que devo salientar, é que muito antes das pomadas e géis feitos pelos cientistas e pesquisadores, as curas desta planta, já eram conhecidas pelos mais simples e serenos deste grande planeta Terra.

A arnica europeia, dizem, é usada na medicina popular desde a Idade Média. Já a arnica brasileira é usada pelos povos originários (indígenas) com seus vastos saberes sobre as plantas, em rituais de cura e para tratamento de lesões há muito, muito tempo. Estes conhecimentos indígenas são o que, em muitos casos, orientam pesquisas científicas sobre as plantas brasileiras.

Embora se afirme que o gênero Arnica não é nativo da África, algumas espécies de plantas com propriedades similares (Solidago), eram popularmente usadas naquele continente, como “Arnica”. Tal planta é historicamente encontrada e utilizada por todo o continente africano, principalmente na região norte (Magrebe). Assim, a sabedoria medicinal africana, trazida pelos escravizados, também foi fortemente utilizada para a consolidação do entendimento dos benefícios que essa planta nos fornece.

Isto posto e voltando ao meu avô, após longa prosa sobre todas as vezes em que seus pais e ele mesmo utilizaram a tal mistura, pegou o frasco e perguntou-me se queria trazer comigo. Fui logo respondendo por educação, que não, e afirmando ainda, que não podia ficar com a mistura curativa, pois não queria o deixar sem.

Foi quando me surpreendeu, insistindo carinhosamente que aceitasse. Disse que eu poderia precisar para cuidar das crianças ou para cuidar de mim mesma e que faria outra mistura para si. Sendo assim, aceitei. Ele então me orientou, dizendo que precisava

esperar um pouco para começar a usar. Uma semana mais ou menos. Usei a Arnica. Usei bastante. Usei nas crianças, em mim, no marido, na amiga. Usei toda orgulhosa da mistura “mágica” feita por meu avô. Sempre contava vaidosamente para

todos de quem tinha ganhado. Toda oportunidade era oportunidade para contar sobre ele. Bem, conforme as crianças foram crescendo, fui usando menos, pois eram eles quem precisavam mais.

E, bem?! Estamos em dois mil e vinte e cinco agora, no segundo semestre do ano e um dia desses me peguei olhando para o frasco. Ainda tem um pouquinho da mistura. Eu não sabia se ainda funcionava. Não sabia, mas passei. Depois foi que descobri que a mistura feita em casa, como aquela foi, tem validade de seis meses a um ano.

Não me recordo se houve explicação, por parte de meu avô, sobre este tempo de validade. A verdade é que minha mistura no frasco não cura mais. Mas isso já não importa tanto. Tanto faz.

Nos tempos atuais em que vivemos, onde as paisagens são formadas por menos natureza e por mais construções diversas, onde raramente se encontram pelos caminhos plantas antes tão comuns, onde dificilmente encontramos quintais sem cimento, é difícil encontrar Arnica; e sinto em dizer que muito tempo se passou desde a última vez em que vi e ouvi meu avô.

Portanto, olhando hoje e pensando bem, meu frasco de Arnica, não é tão somente um frasco de Arnica que não cura mais. É um frasco de memorial, de carinho e de cuidado. De lembrança e de sorriso. De conversa, de ensinamentos e de descoberta. De uma neta. De um avô.

Por tudo isso ficou decidido. Não jogo fora o frasco de Arnica! Não dá. Não devo. A mistura não funciona mais, mas o frasco de Arnica fica. Fica, não sei por quanto tempo. Fica, por todo tempo que precisar. Fica, não mais como cura, mas como lembrança de momentos da sabedoria popular que a ciência fez bem em usar. Desse encontro que infelizmente não vai mais voltar.


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