Foi numa conversa despretensiosa e corriqueira com um querido amigo, que ouvi a frase intrigante “Deixe o pacote comigo, na rua onde tem a estátua do soldado de mochila! Trabalho lá”.
Estranhei a localização, pois a única estátua de soldado que conhecia, era aquela em homenagem ao soldado desconhecido, em referência aos combatentes de Rio Claro, na Revolução Constitucionalista de 1932, localizada na entrada do Cemitério Municipal. Soldado este, sem mochila.
Ao confirmar a entrega na entrada do cemitério, ouvi nova explicação “Na entrada do cemitério não! Perto do postinho de saúde, no caminho da fábrica de frango. Forcei a memória para lembrar da tal estátua, mas não encontrei qualquer lembrança.
Noutro dia, lá estava, conforme o combinado, com o pacote em mãos. Durante nova conversa descontraída, acabei por indagar a respeito da estátua. Com toda naturalidade, firmeza e indignação por meu esquecimento e desatenção, apontou-me.
A tal avenida é uma via que tem início na altura do número 650 da Avenida 29 e se estende aproximadamente até o cruzamento da avenida 78 com a rua José Felício Castelano, no bairro São Miguel. Ao longo dela, temos ao homenageado, esculturas que se repetem em diversos pontos, como se o próprio estivesse por ali caminhando.
Afastei-me da referida estátua, a verificando atentamente. Pasma notei que aquele contorno de um homem, realmente podia passar por um soldado com sua mochila. Todavia, a se espalhar por quase todo o percurso da avenida, estava ninguém menos que Ulysses Guimarães, caminhando daquele jeitinho dele, de braços para trás, de mãos nas costas.
Entre risos, meu amigo e eu nos despedimos e aquela descoberta por muito me acompanhou. Não relatei a ele quem realmente era aquela pessoa. Achei genuína e bonita sua inocente visão. Ele não sabe ler e não leu a “placa legenda”, por isso interpretou do seu jeito. Era um soldado de mochila!
Mas, pensativa, queria encontrar sentido em Ulysses soldado. Tinha que ter sentido, só para um dia poder contar para meu amigo que, de alguma forma, ele tinha razão.
Ulysses, que nasceu em 1916 e fez a passagem em 1992, viera ao mundo em Itirapina, quando o município ainda compunha o nosso (Rio Claro–SP) na vila Itaqueri da Serra. Quando adulto, fora advogado, professor, escritor e político. Esteve presidente da câmara dos deputados por três períodos, foi candidato a presidente da república e dedicou-se, junto a seus companheiros, à redemocratização, as chamadas “Diretas já”. Porém, seu feito mais conhecido foi presidindo a assembleia nacional constituinte em 1987 e 1988, onde com outros tantos, teve a oportunidade de compor a carta magna da nação.
A carta cidadã, como ele gostava de chamar, é a Constituição até hoje vigente. Ela foi elaborada a partir de diversos temas que afligiam os brasileiros, recebendo emendas de toda parte desta terra Pindorâmica. Foram escritos direitos e deveres muito bem definidos e explicados, para mudar a vida que se vivia, em vida democrática.
A carta também estabeleceu os três poderes (executivo, legislativo e judiciário), dando a eles independência ao pretender equilíbrio e harmonia na governança do país, depois de um período de vinte e um anos de ditadura militar. Ditadura militar, foi um regime autoritário que entrou em vigência em abril de 1964 e seguiu até março de 1985, por meio de um golpe. Período onde as liberdades eram restritas, com violações dos direitos humanos e severas perseguições políticas. Assim, essa carta foi um oásis em meio ao deserto.
Também consta na história, que Ulysses fez um belíssimo discurso, quando da promulgação desta constituição em 5 de outubro de 1988. Para finalizar seu discurso afirmou “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil.” levando a multidão que o ouvia emocionada, às lágrimas de alegria.
De forma póstuma (e também por isso), após aprovação no Congresso Nacional, o nome de Ulysses foi inscrito no Panteão dos Heróis da Pátria Brasileira (lei federal n.º 13 815, de 24 de abril de 2019) ao lado de pessoas como Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Luís Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias) patrono do Exército Brasileiro e Joaquim Marques Lisboa (Marquês de Tamandaré) patrono da Marinha do Brasil.
Isto posto, obtive a singela permissão que precisava para a afirmação que pretendia. Ou seja, se Ulysses lutou bravamente por conquistas extremamente significativas representando inúmeros brasileiros, se ao lado de componentes do exército e da marinha está listado seu nome como herói da pátria brasileira; de soldado, pode ser chamado. Soldado que lutou com bravura junto aos demais “pracinhas”, pela liberdade dos brasileiros, sustentando por fim e com orgulho em sua mão estendida aos céus, como arma, nossa carta cidadã. Nossa arma contra a ditadura à brasileira.
Assim, em posse das informações necessárias e após um encontro com Ulysses Guimarães (estátua solitária fixada no salão verde no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados – Brasília–DF) no último fim de semana, finalmente propus ao meu amigo retomarmos a conversa sobre sua tal estátua. Por telefone, conversamos sobre o assunto. Muito cuidadosamente, expliquei-lhe quem era seu soldado. Ele demonstrou genuíno interesse e total atenção.
Finalizado meu discurso, ele permaneceu em silêncio por algum tempo, depois finalmente exclamou “Entendi! Mas parecia um soldado com mochila nas costas! Sabe? Esse Ulysses Guimarães pode realmente ser chamado de soldado. Ele foi guerreiro, batalhador e campeão vencedor de obstáculos. E é muito conhecido, caminhando pela estrada com seus dois braços para trás, pensando na vida e em como melhorar o Brasil.” Nos despedimos, encerrando a ligação.
Assim, sem eu precisar dizer, meu amigo e eu, chegamos à mesma conclusão. Pudemos afirmar que temos um soldado que caminha na avenida Ulysses Guimarães. Um soldado que não deve ser esquecido, antes merece ter sua história conhecida, lembrada e contada.
Quanto à mochila, não temos qualquer evidência que nos permita afirmar que Ulysses carregava uma a tira colo. No entanto, dando asas à imaginação, podemos pensar que sim e pensar ainda mais. Pensar que dentro dela levava sempre sua carta especial, para mostrar a todos os que encontrava por esse seu caminho. Então, como comemoração fora de época, fora de mês, fora do dia; Viva Ulysses, o soldado de mochila!

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