Papo de escritório

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No escuro da sala, sobre a mesa de trabalho, um grampeador punha-se a discutir sua plástica e metálica existência com uma tesoura de cabo preto e corte já a cegar. Ficou pensando em quanta porcaria teria juntado com seus grampos, quando documento inútil na forma de papel.

A tesoura, triunfante, afirmava que era a responsável pelo que era útil ou inútil, que atuava conjuntamente com a criatividade de seu usuário, ao definir figuras, textos e outros que deveriam ficar ou não. Certo que a cola desempenhava seu papel na juntada final, mas a cola não estava participando desta discussão.

– Afirmo que minha presença aqui é imponente. Sou o responsável pela junção, pelo agrupamento. Faço os papéis não se dispersarem. – afirmava o jovem grampeador.

– Qual o quê! Sabes que quase sempre o que juntas é formalismo, algo que poucos lerão e irá ao lixo rapidinho. Importante é saber o que cortar e o que jogar. Isso, sim, é inteligente, não apenas a junção burocrática.

– Mas é o documento que resta que é importante. Os complementos de informação que são apensados ao principal, com grampos, retratarão e explicarão o que se passa naqueles escritos.

– Não creio. Tudo vira lixo depois, ou, no máximo, vai para o arquivo morto, vivo de traças e cupins. Eu participo da decisão do aqui, do imediato. Não fico deixando pedaços de papel inúteis triunfarem. Vão para o lixo – ou melhor, para a reciclagem, que sou moderna – agora, sem demora.

– Estou sempre sendo solicitado, colocam-me grampos periodicamente. Tu é que estás empoeirada e pouco usada…

– Mentira! A poeira é devido à reforma na sala ao lado. Tu também tens uns pozinhos presos nas reentrâncias. É que não consegues ver, devido à pouca mobilidade.

– Sou o símbolo do escritório. E assim serei. Não tem para ninguém – exprime o já irritado grampeador.

Silêncio da tesoura, que disfarçadamente tenta se sacudir para retirar parte da poeira disposta sobre suas lâminas. O grampeador crê ter triunfado e também acomoda-se em seu canto.

Ainda desligado, o computador em silêncio a tudo escutava, rindo-se por dentro. Sabia que o futuro e a função daquelas peças eram cada vez mais decorativos. O mundo virtual dispensa a materialidade dos escritos, dos documentos, dos compromissos. Ele, sim, permaneceria, apesar de estar intrigado com um objeto na forma de tablete com uma tela reluzente que passou por ali naquele dia e sumiu dentro da bolsa do usuário.

Adilson Roberto Gonçalves – Pesquisador da Unesp, publicou contos e poemas em antologias. Tem o livro de poesias “O eu e o outro” publicado em 2016 pela LiteraCidade e integra instituições culturais no interior paulista, dentre eles a Sociedade Vozes Literárias e Grupo de Escritores, vinculados à Academia de Letras Rio-clarense (Alerc-SP).


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